Em “Inventar um avô”, Miguel Sanches Neto revisita memórias familiares e constrói um romance poético sobre luto, imigração e a busca por identidade através da ficção
Escritor com mais de quarenta obras lançadas e de grande representatividade no mercado editorial brasileiro, o paranaense Miguel Sanches Neto alimenta boa parte de sua produção literária com referências pessoais. Dotado de um estilo ficcional próprio pautado na angústia existencial e na memória afetiva, utiliza constantemente a morte como eixo narrativo, impactando o leitor por meio do sentimento de perda. Órfão de pai aos quatro anos de idade e com uma trajetória acadêmica brilhante, expõe em muitas de suas narrativas as vivências do luto, sempre com muita sensibilidade e força poética.
Em Inventar um avô, lançamento da Maralto Edições, Miguel Sanches Neto mergulha o leitor nos sentimentos da orfandade e passeia entre o real e o ficcional ao se aprofundar na história da imigração espanhola no Brasil. Resultado de um profundo trabalho de pesquisa de campo em cidades do interior e do litoral do estado de São Paulo e também no Museu da Imigração de São Paulo, a obra é um rico documento sobre como ocorreram as ondas migratórias do início do século XX, em que cerca de 700 mil espanhóis desembarcaram no Brasil.
“O livro é inspirado no fato de não haver nenhum registro do meu avô espanhol em nenhum lugar”, explica o autor. “Nem mesmo nos documentos de imigração. Ele chegou ao Brasil em 1912 e desapareceu nos sertões paulistas, morrendo cedo. Tentei entender pela ficção como as famílias analfabetas que trabalharam nas lavouras de café sofreram de uma invisibilidade muito rápida. Não sabemos nem onde meu avô está enterrado. Este romance é um túmulo ficcional para ele.”
Narrada em primeira pessoa, a obra se inicia com a atitude de um pai que batiza seus três filhos com o mesmo nome. Quando questionado sobre a decisão, diz apenas que “naqueles tempos morriam muitas crianças”. Após a morte do pai, os três irmãos crescem cuidando da mãe em uma casa povoada por bonecas. Esse ambiente familiar, marcado por uma rotina por vezes obscura, se desestabiliza quando o filho mais novo decide viajar para outra cidade. A partir daí inicia-se a saga do narrador-protagonista em busca da própria identidade por meio da trajetória de um avô espanhol sem história.
“É um livro que tenta ser um exercício de delicadeza, mostrando como podemos descender de narrativas inventadas, que não precisamos ter um passado palpável para nos representar. Toda pessoa que se interessa por recordações familiares vai encontrar nele uma maneira diferente de recuperar a saga dos imigrantes”, reflete Sanches Neto. “Meu avô foi um buraco na memória familiar. O romance tem algo detetivesco, de tentativa de encontrar um desaparecido, este avô avesso à visibilidade. A sua invisibilidade principal é de linguagem, por ter sido analfabeto. E o narrador tem que corrigir isso dando a ele uma história escrita. ”
Escrito entre 2015 e 2016, época em que o autor morou em Portugal, Inventar um avô passou por mudanças na narrativa. Após muitas alterações, a obra perdeu o caráter autobiográfico e ganhou elementos ficcionais, e uma linguagem mais poética. A obra marca também um período difícil na vida de Sanches Neto, que passou por um longo período de depressão.
“Nos últimos anos, passei por um processo depressivo muito agudo, que culminou em uma crise durante todo o ano de 2022. No momento mais crítico, decidi parar de escrever. Fui parando até de tomar notas nos diários que mantenho desde 2007, pois não conseguia mais me entusiasmar com a escrita. A produção principalmente do romance exige uma energia contínua e crescente, que me faltava naquele momento. Nos últimos dois meses eu venho superando a depressão e tenho feito isso por meio da escrita”, finaliza o autor.
Inventar um avô é uma leitura envolvente, uma obra de natureza introspectiva que mergulha fundo nos afetos que cercam o luto, ao mesmo tempo em que lança um olhar para a esperança, para um amanhã que flerta sempre com o imprevisível.
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Sobre o autor:
MIGUEL SANCHES NETO nasceu em 1965, em Bela Vista do Paraíso, Paraná. É formado em Letras, mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina, doutor em Letras pela Unicamp (1994-1998), com estágio de pós-doutoramento na Universidade do Minho, em Portugal. Professor-associado de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR). Estreou na literatura com Inscrições a giz (1991), vencedor do Prêmio Nacional Luís Delfino de Poesia de 1989.
É autor de mais de 40 livros em diversos gêneros, de diários a aforismos, com destaque para três títulos autobiográficos: o romance Chove sobre minha infância (2000), o volume de poemas Venho de um país obscuro (2000) e as crônicas de Herdando uma biblioteca (2004). Recebeu os prêmios Cruz e Sousa (2002) e Binacional das Artes e da Cultura Brasil-Argentina (2005). Foi finalista mais de uma vez dos prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura. Atualmente é reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa.