Durante os momentos mais reclusos da pandemia, Daniela Mercury escreveu um número bastante expressivo de canções. Chegou a fazer cerca de 60, entre músicas completamente acabadas e esboços bem encaminhados.
O combustível para a criação das letras variou entre o presente imediato e desolador do isolamento – e nisso estão incluídas as questões sociais e políticas que, em tantos sentidos, fizeram adoecer o nosso país – e um passado bem mais acolhedor, resgatado em memórias da infância e adolescência, uma história vivida com alegria e intensidade em sua cidade natal, Salvador.
A partir desse volumoso material, Daniela construiu seu novo álbum, Baiana, que chega agora às plataformas de música com o carimbo de seu selo, Páginas do Mar. Além do repertório autoral, escrito por Daniela sozinha ou com parceiros como Jaguar Andrade, Mikael Mutti, Fernando de Carvalho e Zé Celso Martinez Corrêa, a artista foi em busca de material produzido por jovens autores nordestinos, como o pernambucano Martins, que assina duas canções, e Posada, que, apesar da origem sueca, também foi criado em Pernambuco.
Inicialmente, o álbum se chamaria “Samba”, pois boa parte de sua sonoridade partiu de pesquisas feitas por Daniela e sua banda combinando células de bossa nova e samba reggae. E a regravação de “A Felicidade”, clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, é resultado desse encontro entre gêneros. Mas, conceitualmente, a relevância do Nordeste foi se impondo no apanhado de canções. O mesmo Nordeste que, nas eleições, salvou o Brasil e a democracia. Entre Nordeste e Samba surgiu a imagem da Baiana, unindo isso tudo.
“Baiana” (Daniela Mercury), a canção que nomeia o álbum, é um exemplo perfeito de como se cruzam as paisagens da memória e os caminhos do tempo presente na lírica atual da compositora. Sua letra enumera alguns dos bairros populares de Salvador, a vivência da artista em lugares que não viraram cartão postal da cidade. Ela se deu conta de que quase toda a produção recente da música baiana só falava das avenidas do Carnaval, locais onde a música passa. Decidiu então desvincular a paisagem. Ao mesmo tempo em que faz crônica social e política, escreve sua autobiografia: “Sou urbana/ Da Rua Sem Saída de Brotas/ Do engenho velho dos Galés e Nazaré/ Parada de ônibus na Baixa dos Sapateiros/ Comprei couro e fiz sandália pra Brincar o ano inteiro”. E amarra, em busca da expansão da cidade: “Há tantos novos bairros/ Tantas esquinas pra carnavalizar/ Pra pagodear/ Pra groovar/ Pra inventar um novo movimento”.
E a letra segue, grandiosa e sem repetições. Quase toda a produção autoral, aliás, tem agora essa característica: letras longas e sem refrãos, em estruturas formalmente ousadas. Daniela tirou as redundâncias a fim de criar músicas-labirintos, faixas que às vezes ultrapassam os cinco minutos e em que tudo é novo o tempo todo. Vai na contramão da música pop atual, sem a preocupação de que esse repertório funcione em cima do trio elétrico nos carnavais. Quis fazer, conforme suas palavras, uma “MPB de rua”.
E esse formato épico engrandece os conteúdos políticos de “O Samba Não Pode Esperar” (Daniela Mercury), single lançado antes do primeiro turno das eleições presidenciais, e “Mulheres do Mundo” (Daniela Mercury), cuja letra celebra a luta feminina – e nordestina – nesses tempos de frágil democracia: “Elas fizeram a Revolução/ Ele não/ Ele não sabe não/ As mulheres proclamaram a Independência do Brasil/ Dos anos 2000”.
“Caetano Filho do Tempo” e “Engomadeira” são letras e melodias de Daniela Mercury escritas sobre bases encomendadas ao produtor Jaguar Andrade. A primeira é uma ode ao mestre baiano, que como Daniela, nasceu sob o signo de Leão, e traz referências a “Alegria Alegria”, “Odara” e “Tropicália”, entre outras canções do compositor. A segunda é uma crônica sob o ponto de vista de quem olha a cidade de dentro do ônibus lotado: “Na suburbana/ Na beira da praia/ Bem longe do centro/ A cidade cresce/ A cidade sobe e desce/ Quanta beleza se esconde/ Em Águas de Meninos/ No bairro da paz/ Na estrada da Liberdade/ Na calçada/ Na Fazenda Grande/ Em Pernambués/ As mulheres sustentam a casa/ E rezam por dias melhores/ Mas a violência não deixa”. Márcio Victor (Psirico) gravou percussão nas duas faixas. Um dos grandes percussionistas do Brasil e atualmente uma estrela do pagode baiano, o músico tocou por anos nas bandas de Caetano e Daniela.
Outro produtor que se tornou parceiro em composições de Baiana é Mikael Mutti, com quem a Daniela Mercury trabalha desde o álbum Feijão com Arroz (1996). A dupla assina duas das faixas mais solares do novo álbum, “Soteropolitanamente na Moral”, já lançada como segundo single, e “Aglomera”, que encerra Baiana com clima esperançoso fazendo referência a “Sonho Impossível” de Chico Buarque e Ruy Guerra: “Aglomera toda a multidão/ Aglomera preparados para a primavera que renascerá do impossível chão”. De autoria solitária de Mikael Mutti, “Disparo a Flecha” é uma love song – ou, por outra, uma sexy song – construída sobre uma melodia de bossa nova e com poética absolutamente soteropolitana: “Itapuã vai hipnotizar você/ Te falei que eu quero ir/ Um pouco de subversão/ Habita na minha canção/ Eu gosto de andar com quem gosta de beijar na boca”. Mutti vive atualmente em Los Angeles, onde faz trilhas para cinema, entre outros trabalhos.
O centenário da Semana de Arte Moderna é festejado em “Macunaíma”, uma fusão de galope com kuduro. Daniela pediu o texto para Zé Celso Martinez Corrêa, que escreveu a quatro mãos com o também ator, dramaturgo e diretor Fernando de Carvalho. Mário de Andrade, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade se irmanam a Caetano Veloso (“Sem samba não dá”), Gilberto Gil (“dois, dois, dois, dois”), Fernanda Montenegro, Emicida, Elza Soares, Pabllo Vittar, Anitta e Elisa Lucinda na batalha antropofágica nossa de cada dia.
Além das já citadas “Disparo a Flecha” e “A Felicidade”, Daniela Mercury gravou outras quatro canções de que não é autora. “Bombinha”, do sueco-pernambucano Posada. Versos como “Quem explode é bombinha/ Eu quero é cantar pros meus/ Deixe que eu mesma decido/ Que rainha sou eu” logo chamaram a atenção de Daniela, que quis trazer para si a canção. Outra gravação de Baiana, “Me Dê” foi lançada pelo autor, o jovem pernambucano Martins, em seu primeiro álbum, de 2019. Mas Martins, que Daniela conheceu em eventos pela democracia, também contribui com a inédita “Deixa Rolar”, que tem a suavidade que Daniela buscava para equilibrar a densidade do repertório. Por fim, “Intimidade com a Entidade” foi escrita pelo combo de compositores Aila Menezes, Deco Simões, Emerson Taquari, Leo Reis, Mikael Mutti e Sergio Rocha. E, como o próprio título faz concluir, é o tema religioso do disco, compondo assim um mosaico mais completo da Bahia.
Como todos os álbuns gerados no período da pandemia, Baiana foi quase todo produzido remotamente. Daniela dividiu a produção das faixas com outros cinco produtores: Mikael Mutti (“Soteropolitanamente na Moral”, “O Samba Não Pode Esperar”, “Aglomera”, “Deixa Rolar”, “Me Dê” e “Disparo a Flecha”), Juliano Valle (“Macunaíma” e “Mulheres do Mundo”), Yacoce Simões (“Baiana”), Ubiratan Marques (“Bombinha”), Jaguar Andrade (“Caetano Filho do Tempo” e “Engomadeira”) e Gabriel Póvoas (“Intimidade Com a Entidade”). Cada um deu suas contribuições, em muitas idas e vindas, até que se chegasse a resultado plenamente satisfatório.
Baiana é lançado no ano em que O Canto da Cidade (1992), álbum fundamental de Daniela Mercury, completa três décadas. E é curioso ver onde vieram rebater os ecos dessa voz fundamental da música brasileira 30 anos depois, neste seu trabalho mais autobiográfico. Está tudo nele. A história da menina que escrevia cadernos já na adolescência, despejando neles seus textos e poemas. Que cavou uma bolsa de estudos porque queria ser bailarina. Que foi dar uma primeira canja no show de um amigo aos 15 anos e imediatamente se tornou atração fixa daquele barzinho, todas as quintas-feiras. Que, menor de idade, teve que fugir tantas vezes para a cozinha do bar quando o juizado aparecia. As memórias da casa dos avós, onde morava. E da influência fundamental da professora Ângela Dantas em muitas dessas fases. Do curso na Federal da Bahia. Dos grupos de dança, onde fazia coreografias em cima de álbuns inteiros de Milton Nascimento, Chico Buarque, Egberto Gismonti. Da ida ao Curuzu para assistir a um ensaio do Ilê, onde também deu uma canja e – adivinha só – foi abraçada pelo bloco, definitivamente. Vovô do Ilê botou o apelido: A Branca Mal Assombrada. Nascia ali a Daniela Mercury que conhecemos hoje. E que segue cantando a cidade, para o país e para o mundo.