Bebel Gilberto lança o álbum ‘João’, uma carta de amor ao pai. Tributo a João Gilberto chega às plataformas digitais em 25 de agosto

Tudo na vida de Bebel Gilberto envolve família e música. Seu pai, o baiano João Gilberto, foi um dos criadores da bossa nova, gênero que provocou uma revolução na música brasileira e a projetou no mundo.

Os dois eram incrivelmente próximos – suas primeiras lembranças envolvem vê-lo tocar violão, aperfeiçoar aquelas canções clássicas e deixar a mágica acontecer bem diante de seus olhos juvenis. João faleceu em 2019 – o mundo da música perdeu um gênio, mas Bebel perdeu o homem que a colocou no mundo.

Em seu novo álbum, ‘JOÃO’ (Pias, 2023), a cantora funde as duas figuras – em um testemunho supremo da arte duradoura do artista, mas também um ato incrivelmente tocante de devoção de uma filha a seu pai.

A jornalista francesa Véronique Mortaigne, que por quase 30 anos atuou como crítica musical do diário Le Monde, relembra que a música em Bebel vem não apenas de João Gilberto, mas é o esteio de sua própria existência: “João, o pai, o alquimista do samba; Miúcha, a mãe, amiga íntima e intérprete da dupla mágica Tom Jobim e Vinicius de Moraes, mas também irmã e cúmplice de um rei da poesia brasileira contemporânea, Chico Buarque”, exalta Véronique. “Bebel, é claro, não é órfã, pois tem a música deles, carrega-a dentro de si, e a ingeriu com aquela aptidão antropofágica que os brasileiros têm”, complementa.

‘JOÃO’ é uma gravação terna e muitas vezes comovente, que revela tanto sobre Bebel quanto sobre o pai, cuja obra ela evitava visitar por desejo de trilhar o seu próprio caminho. “Eu pressentia que só conseguiria fazer isso quando meu pai não estivesse mais por perto”, ela consente. “Esse momento finalmente chegou. Agora pode ser do meu jeito, com covers de músicas que nunca pensei que faria. Pela primeira vez, estou interpretando as músicas dele e revelando como elas realmente me marcaram. São canções que ouvi durante toda a minha infância, então foi uma escolha de repertório afetiva, não me prendi somente aos clássicos.”

Bebel Gilberto cresceu com o som do violão de seu pai ressoando pela casa da família. “Nunca imaginei que aquilo que eu presenciava era tão importante”, diz, achando graça. “Para mim, era só a vida acontecendo. Acordava, levava café e ele tocava violão. Era normal, fazia parte do meu cotidiano. Mas adorava ouvi-lo tocar seus exercícios de aquecimento todas as manhãs.”

Agora, é como se um círculo enfim se completasse. Mergulhar nessas memórias fez de ‘JOÃO’ um álbum permeado de emoção. “Tive que aprender tantas músicas, ouvindo-as repetidamente. Apreciava cada fraseado, por que ele escolhia cantar assim e por que selecionou essas ou aquelas palavras. É um álbum-tributo, mas nele também atuo como criadora.”

Véronique Mortaigne aponta caminhos percorridos por Bebel para demarcar a autoralidade desse novo trabalho. “Enquanto João, o pai, assegurava a simbiose entre a guitarra e a voz rouca, Bebel vive plenamente a sua, colocando-a em primeiro plano. A sua voz é tecida sobre tramas musicais de piano, flauta, mellotron, percussão sedosa, guitarra, tubas… Em vez de murmúrios, suspiros, repetições e alongamentos, Bebel criou outras pausas vocais, outras volutas, outras escansões”, enaltece a jornalista.

Com projeto gráfico assinado por Giovanni Bianco, diretor criativo brasileiro que atua internacionalmente no mundo da música e da moda, o novo álbum foi construído ao lado do produtor Thomas Bartlett (já presente no anterior, ‘Agora’), com Bebel reunindo um coletivo de músicos que ocupam um lugar especial em sua vida, como atesta a presença do primo (em segundo grau) Chico Brown na bateria. Sem dúvida o seu disco mais pessoal até hoje, ‘JOÃO’ surgiu de um ambiente de total confiança. “O Thomas (Bartlett, produtor) é incrível”, observa ela. “É um colaborador maravilhoso, mas também um grande amigo. Ele sabe como a minha cabeça funciona. Eu estava envolvida na mixagem, nos arranjos, na edição. Eu tinha que estar 100% feliz e positiva sobre o álbum. Eu sabia exatamente o que estava fazendo.”

Gravado no Reservoir Studios, em Nova York, com Guilherme Monteiro no violão, assumindo a nada invejável tarefa de substituir o próprio mestre, João Gilberto. “Sua dedicação a este álbum é absolutamente extraordinária. Ele era tão humilde, aceitando de mente aberta as minhas sugestões. Eu alterava as passagens dos acordes, pois meu pai nunca se repetia. E isso faz parte – afinal era o meu pai, o arranjador, à espreita na minha cabeça.”

“Dois álbuns realmente me serviram de inspiração”, continua Bebel, citando o majestoso ‘João Gilberto’, de 1973, apelidado de o Álbum Branco do artista, e os ricos arranjos de Claus Ogermann que adornam ‘Amoroso’, de 1977, como os pontos centrais de orientação do novo trabalho. “São cartas de amor musicadas”, diz ela. “Há uma ingenuidade nisso. E é fascinante perceber quantas canções de amor, de coração partido, meu pai cantou. Artistas são, acima de tudo, humanos… lidem com isso!”

“O disco de 1973 é cheio de silêncios, fantasmas e espíritos, e foi produzido pela americana Wendy Carlos, transexual pioneira da música eletrônica e dos sintetizadores modulares Moog, compositora da banda sonora de Laranja Mecânica”, aponta Véronique. Do “álbum branco” foram pinçadas duas canções escritas pelo próprio João Gilberto. Uma é ‘Undiu’, que a jornalista define como “uma espécie de canção de ninar atonal, muito influenciada pelos sons do Nordeste, toda em sílabas sussurradas”. A gravação original tinha seis minutos de duração, mas a versão de Bebel possui apenas a metade do tempo. A outra é ‘Valsa’, também batizada de ‘Como são lindos os Youguis’ e ‘Bebel’. Também desse disco entraram ‘Eu Vim da Bahia’ (Gilberto Gil), uma música que conecta a cantora à sua herança paterna, e ‘É preciso perdoar’, de Alcivando Luz e Carlos Coqueijo, lançado em maio como primeiro single do disco, e que ganhou clipe dirigido por Erich Baptista.

De ‘Amoroso’ veio ‘Caminhos Cruzados’ (Tom Jobim/Newton Mendonça). “Foi a música mais difícil para cantar”, afirma Bebel. “Eu tinha que fazer direito. O tom certo. A chave certa. Eu me envolvi muito no arranjo – cada pequena nota tinha que estar absolutamente correta.”

Todas as músicas foram escolhidas com cuidado, com cada uma delas ligada a uma memória. A faixa de abertura, ‘Adeus América’, lançada como o segundo single do álbum, é uma canção que Bebel levou alguns anos para entender. “Só faz sentido para mim agora. Aquela música foi a história dele, mas de alguma forma também se tornou a minha história”, observa. ‘Adeus América’ é um samba composto em 1948 por Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa, presente no ‘Live at the 19th Montreux Jazz Festival’, lançado por João em 1986.

‘Eclipse’, presente em ‘João Gilberto en Mexico’, de 1970, é cantada em espanhol e foi escrita por Margarida Lecuona provavelmente durante o período em que Bebel e os pais moravam no México. É uma época que a cantora guarda no coração – a família montou um zoológico, com um pavão selvagem autorizado a vagar pela casa enquanto seu pai compunha. Aliás, a fotografia de capa – um beijo carinhoso de Bebel na bochecha do pai, registrado por Miúcha – data desse feliz período da infância. Desse mesmo disco, foi extraída ‘Ela é carioca’ (Tom Jobim/Vinicius de Moraes).

Bebel Gilberto
Foto Bebel e João 1968

Uma experiência sem dúvida emocional, o álbum também é dominado pela alegria. Vide ‘O Pato’ (Jaime Silva/Neuza Teixeira), “uma música tão ingênua … – é quase como um desenho animado”, aponta. “É divertido, algo em que meu pai era ótimo. É engraçado e desajeitado ao mesmo tempo”. ‘O Pato’ foi pinçada do segundo disco de João Gilberto, ‘o amor o sorriso e a flor’, lançado em 1960. “Bebel transforma-se então, voluptuosamente, numa arranjadora, acompanhada por Clark Gayton, um trombonista que sabe captar o invisível”, enaltece Véronique.

Do seminal ‘Chega de Saudade’, aparece em ‘JOÃO’ o clássico ‘Desafinado’, de Tom Jobim e Newton Mendonça. Na faixa de encerramento, Bebel colocou ‘Você e eu’, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, originalmente registrada no terceiro disco solo do artista, ‘João Gilberto’, de 1961.

Em última análise, o álbum é uma dedicatória comovente (e comovida) de uma filha para seu pai. As sessões eram emocionantes, como Bebel admite. “Muitas vezes tive que parar, chorar… colocar esses sentimentos para fora e começar de novo. Tem sido difícil. Eu lido com isso profissionalmente, como um adulto. Mas é difícil. Tive que trabalhar duro para abraçar essa situação. Meu pai e eu éramos muito, muito, muito próximos. Já se passaram quatro anos, mas eu adoraria ligar para ele e pedir conselhos. É algo que nunca vai acabar.”

‘JOÃO’ é um álbum que reforçou em Bebel Gilberto a sua herança musical, ao mesmo tempo em que revelou algumas lições duradouras sobre sua própria arte. “Lembre-se sempre de que menos é mais”, ela sorri. “Não exagere. Observe os espaços, observe o tempo. E, tanto quanto você puder, tente apreciar a música, e não apenas tocá-la.”, ensina a artista.

‘João’

Produzido por Thomas Bartlett e Bebel Gilberto
Mixado por Thomas Bartlett e Patrick Dillett
Arranjos de guitarra: Guilherme Monteiro
Masterizado por UE Nastasi at Sterling Sound

Faixas

  1. ‘Adeus América’ (Geraldo Jacques/Haroldo Barbosa)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Percussão: Magrus Borges, Chico Brown e Kenny Wollesen
    Piano, mellotron, caxixi: Thomas Bartlett
  2. ‘Eu vim da Bahia’ (Gilberto Gil)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Percussão: Magrus Borges, Kenny Wollesen
    Programação: Thomas Bartlett
  3. ‘É preciso perdoar’ (Alcyvando Luz/Carlos Coqueijo)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Percussão: Kenny Wollesen
    Piano, Programação, Mellotron: Thomas Bartlett
  4. ‘Undiu’ (João Gilberto)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Percussão: Kenny Wollesen
    Piano, Acordeon, Programação: Thomas Bartlett
  5. ‘Ela é carioca’ (Antonio Carlos Jobim/Vinicius De Moraes)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Flauta: Alex Sopp
    Percussão: Magrus, Borges, Chico Brown
    Piano, Mellotron: Thomas Bartlett
  6. ‘O pato’ (Jaime Silva/Neuza Teixeira)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Flauta: Alex Sopp
    Percussão: Chico Brown
  7. Tuba, Trombone: Clark Gayton
    Arranjo de sopros: Clark Gayton/Bebel Gilberto
    Programação: Thomas Bartlett
    ‘Caminhos cruzados’ (Antonio Carlos Jobim/Newton Mendonça)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Flauta: Alex Sopp
    Percussão: Magrus Borges, Chico Brown, Kenny Wollesen
    Piano, Programação, Mellotron, OP-1: Thomas Bartlett
  8. ‘Desafinado’ (Antonio Carlos Jobim/Newton Mendonça)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Flauta: Alex Sopp
    Piano, Programação: Thomas Bartlett
  9. ‘Valsa’ (João Gilberto)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Percussão: Magrus Borges
    Programação: Thomas Bartlett
  10. ‘Eclipse’ (Margarita Lecouna)
    Flauta: Alex Sopp
    Piano: Thomas Bartlett
  11. ‘Você e eu’ (Carlos Lyra/Vinicius De Moraes)
    Guitarra acústica: Guilherme Monteiro
    Percussão: Magrus Borges
    Piano, Programação, Mellotron: Thomas Bartlett